sábado, 15 de setembro de 2012

#2 - A máquina de gastar gente


Assim que entramos no mercado do peixe do Perpétuo Socorro, somos surpreendidos – mais ou menos, dependendo do contato que se tem com esses mercados de peixe da Amazônia – pela barafunda colorida e álacre que toma as bancadas recobertas de zinco onde jazem, ainda vivos – mais do que frescos – tambaquis, uritingas, piaus, pacus, pacusis, piranhas, akaris, bodós, filhotes, piraíbas, matrinxãs, pirapitingas, surubins, etc. O gazetear dos vendedores, os chistes sinceros dos carregadores e compradores, tudo isso envolve o espectador numa aura própria, única, que dissolve o tempo e lhe imputa uma certa pressa, ou, antes, uma azáfama alegre e buliçosa, que marca o contraste da aparente pobreza dos frequentadores (compradores e vendedores) com a riqueza que manipulam, a nobreza do produto que negociam, e cuja fartura permite aos mais esclarecidos entender que a pobreza é apenas aparente.

Não foi diferente neste sábado onde, indo encontrar minha camarada cozinheira de terra indígena, Naídes, que mantém uma banca de peixe salgado no mercado, aproveitei para comprar matrinxãs e fazer umas fotos dos já conhecidos vendedores. Entre um gole e outro de café, eis que uma algaravia toma a parte fronteira do mercado: defronte ao caminhão que descarregava sacas de cebolas, Maria Inês, conhecida vendedora de ervas e tucupi, deblaterava com o proprietário do caminhão, que lhe devia sacas e mais sacas já pagas, vindo entregar, disparatadamente, apenas aos outros vendedores, o produto. De chofre, Maria Inês, irritada e a invectivar contra um carregador, entre aplausos e gritos jocosos de incentivo dos frequentadores do mercado, sobe à caçamba do caminhão e começa a deitar fora as sacas que o dono entregaria a outros que não ela. Mais aplausos e chistes.
---- Égua, mulherzinha enxirida essa! Dizem alguns.
---- Certa ela... o homem recebeu e não entrega... tá pensando que a gente somos besta?
Naídes e Loira, sua colega de banca, se riem, e arrumam os saquinhos com coloral e as garrafinhas de tucupi sobre a bancada, enquanto eu dou mais uma rodada pelas bancadas onde uma nova leva de tambaquis e pacus pretos agonizam, e, para sincera irritação de um jovem vendedor, ainda não convencem a dona maria que, examinando-o detrás dos óculos de grossos aros e prendendo os cabelos já repletos de cãs, pergunta:
---- Essa aqui tá fresca mesmo, será se?
Mais algumas tomadas, e gracejos com um freguês que afastou-se o foco da objetiva de sopetão, como quem leva um soco, como um foragido.
---- Égua, medo é esse mano? Tá com medo de ir para no Bronca Pesada do meio-dia? Exclama entre risos o vendedor que tica um par de piranhas na sua frente.
Mais risos. A vida segue seu ritmo, entre a morte agonizante dos peixes e o sustento dos vendedores e das famílias das matronas caboclas que regateiam o centavo/grama, como sói.
Deixando o mercado, provisoriamente instalado na avenida Ana Nery, longe um tanto do Amazonas, mas ainda no tradicional bairro pescador do Perpétuo Socorro, deixei-me levar pela faina colorida e aromática do mercadejar dos viventes, e vaguei a esmo pelo bairro, pois tinha-se acabado a película – última – dentro da Zeiss.
Como sempre acontece, deparei-me com a beira-rio, que, neste trecho a norte do Igarapé das Mulheres, é um ermo selvagem – deliciosamente selvagem – onde os aningais encostam de quando em quando, e ainda há vegetação sobre o leito lamacento-arenoso do Rio. Uma placa de macabaúba encostada à murada, e mais um chiste de vida: “Temos peixe”. Ô se! O Rio logo atrás. Última pose, sorte!
 
Estando o sol a pino, o que, por estas bandas equatoriais significa que estava inclemente, decidi aprumar o rumo da caminhada para o Igarapé das Mulheres, de onde poderia comprar um açaí ir para casa assar a matrinxã. Mas todas as vezes que percorro este lado norte da orla, agora devastada pela força das águas no repiquete pré-piracema, sinto certo misto de tristeza e felicidade. Felicidade porque sendo ali a beira-rio do bairro pobre e tradicional dos pescadores, os esforços das prefeituras anteriores em construir quiosques com apelo turístico (o que, no caso do Brasil, consagra sua raiz e quer dizer “para inglês – e só inglês, não o nativo – ver”) e transformar a várzea em uma praia para os gringos, foram malogrados.
Mas também tristeza porque, contemplando a beleza da paisagem ainda selvagem, onde alguns moradores se banham com os filhos tranquilamente, e, na preamar, lanchas e iates aportam à espera da cheia, regateando, sempre vejo por ali algumas pessoas que se apoderaram dos quiosques falidos e, tendo atado redes, cozinham em latas de tinta látex os bodós que o povo joga fora. Como pode tanta pobreza, à margem de tanta riqueza? É um contraste de dar calafrios: Pneumotórax, uma vinda inteira que poderia ter sido e não foi...
Por diversas vezes essa mistura de sensações tomou conta de mim ao passar por ali. E isso se acirrou desde de a ante-penúltima vez, quando, ao entardecer de uma quinta-feira, vi uma moça jovem, de cerca de 18 anos, morena de nascença, escura de sol, magra e tatuada, sair de uma lancha aportada enquanto o proprietário subia a braguilha de sua calça, à proa, como quem palita os dentes depois de melar-se todo de peixe reimoso. Seus olhos – os da moça – percorriam a beira, envergonhados, e pude ver que mareavam, à preamar.
Outra feita, zanzando por ali, confirmei as suspeitas: era, a moça, mais uma das mulheres brasileiras que o Brasil enjeita, e que sustenta as carnes depreciando a alma, vivenciando perigos vários por estas beiras, baixios, zonas, portos, tantos, tantos, que sequer chegamos a conhecer.
O caso é que desta feita, tomado, como sempre desde então, pela mesma mistura de sensações de sempre, parei em um ponto onde julgava não haver absolutamente ninguém, para aproveitar o poderoso zoom ótico da câmera digital e fazer umas tomadas de um pai que brincava com seu filho nas águas do Amazonas banhadas de luz, até que, amaldiçoando o sistema de focagem da Fuji, que limita muito a focagem manual, percebi que alguém se achegava por trás de mim.
---- O senhor tem um cigarro?
Era ela. Magra, queimada de sol, o rosto jovem e o riso ingênuo de moça cabocla a persistir, triunfante, sobre a pobreza extrema a que fora relegada. Respondi que não, e fiz menção de que ia guardar o equipamento e deixar o local, já que, não pretendendo usufruir de seus serviços, não iria tomar-lhe o tempo.
---- Aqui é bonito né? Pena que é sujo. Eu moro aqui, na beira, bem ali – e embeiçou na direção dos quiosques abandonados.
---- Pois é, é lindo, sim. Tampei a objetiva, e fechei o case da digital, respondendo que, ao menos, não lhe faltava lugar para banhar e pegar água (em todo o Perpéctuo Socorro, por um milagre da natureza humana e da administração pública a mais corrupta, falta água, estando há metros do maior rio do mundo: não riam; por favor, contenham-se, pois é triste).
---- Ah, não, eu não banho aqui não. É muito sujo. Tem muita gente que joga sujeira, porco morto; por esses dias, mataram uma sucuriju aqui com um pau. Sorriu, entre matreira e humilhada, a engolir seco como quem se prepara para anunciar ou pedir algo importante. E prosseguiu: ---- eu banho nos barcos, quando durmo com os caras, e também no motel...
Fez um silêncio envergonhado, contemplou o rio, e, prendendo o vestido com a presilha dos cabelos, no intento de mostrar as magras pernas provocativamente, tomou a resolução de expor, por fim, seu intento:
---- Bora fazer um sistema, nós dois? Eu tô com fome...
Eu, que já tinha virado as costas devagar e ia embora, aproveitando sua pausa contemplativa, estaquei, gélido, ante a dureza sincera da frase, enunciada em tom tão melífluo e matreiro por uma simples menina, tão menina quanto versada nas artes de humilhar a alma promovendo o corpo. “Eu tô com fome” foi a frase mais arrebatadora que ela poderia ter dito, neste contexto delicadamente orquestrado para embrutecer os sentidos e calar a razão, ironicamente diante de tão puros e bonitos, profundos estímulos como o vento agridoce e a paisagem do rio, em cuja outra margem um verdadeiro e concreto Eldorado se estende pelo tapete verde de açaizais cortados pelo Rio de onde os peixes pulam para as malhadeiras por livre iniciativa.
Sem saber o que lhe dizer, lamentei, dizendo que não poderia (sabendo, no íntimo, que expor as reais razões para isso a humilhariam ainda mais, pois seria o mesmo que dizer-lhe em letras garrafais que eu recusava humilhá-la porque ela se humilhava por profissão), e deixei, vergado, o posto onde ela me abordara, sem conseguir conter o marear dos olhos.
Caminhando cabisbaixo os 500m que me separavam da aglomeração que guarnece o boqueirão do Igarapé, e onde a faina de beira retoma seu pique, deparei-me com uma pequena lancha sem pintura emborcada, que, com o motor de centro acionado, secava o porão do batelão. De dentro dele, sorridente e simpático, acenou para mim o proprietário, enquanto jogava para a lama quilos e mais quilos de akari-bodó, peixe de fácil reprodução e pesca que, pela aparência cascuda, pela cor escura, pelo hábito de sobreviver da e na lama quando das secas, e pela facilidade de ser pescado, é completamente desprezado como uma Geni, por estas paragens urbanas amazônicas, onde impera o desperdício o mais gritante dos recursos mais preciosos que o Planeta já ousou nos oferecer.
Isso me fez pensar, com amargura, na moça que oferecera seu corpo por um litro de açaí – quiçá menos – sobrevivendo às margens do maior estoque pesqueiro, de açaí, de biodiversidade e riquezas jamais conhecido pelo homem; consagrando o espírito amapaense, sempre disposto a fazer-se maquete, caricatura do Brasil, ao celebrar uma ode ao desperdício, ao mau-trato, ao mau-uso, ao não-cuidado. Agradecendo ao velho Daia pelo açaí especial vendido, como sempre, pelo preço do normal, cruzei os conveses dos iates e lanchas abeirados para chegar em casa, pensando em Darcy Ribeiro, que foi quem, depois de tudo o que tenho visto e vivido, nesse sentido, me deu uma das melhores definições do que somos neste país: o Brasil é uma máquina de gastar gente – desperdiçar recursos, e acumular riqueza nas mãos de poucos, acrescento.

Bruno Walter Caporrino
Macapá, 26 de maio de 2012





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