quarta-feira, 24 de outubro de 2012

#4 - Pós-Guerra do Desconcerto

O objetivo desse pequeno Portal é, como anunciado, estimular uma reflexão sobre a fotografia como construto narrativo vário, à luz (já que se trata essencialmente de luz) dos discursos construídos sobre "alteridades", visando explorar visões não sobre "os Outros" - e um debate sobre isso será iniciado aqui em breve - que não existem senão como funções (f) de determinados nós, mas sim sobre o ato de fotografar como um ato de aproximação ou negação dos outros através da maior ou menor projeção do observador e seus valores no mundo que apreende através da fotografia.

Bem, o fato é que desde que comecei a me arriscar pelo universo da fotografia, nos idos de 2006, idealizei um roteiro para um curta(curtíssimo)-metragem, de 1 minuto de duração, intitulado "Pós-Guerra do Desconcerto".

A idéia surgiu em minha mente em um dos inúmeros dias em que eu passava horas errando pelo Centro de São Paulo, onde ainda morava (me escondia?). Naquele período, eu estava finalizando a edição do (sempre) inédito livro de contos intitulado "Tristes Episódios", cujos episódios, inspirados em fatos transpirados por mim na realidade, giravam todos em torno dos fatídicos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) às Polícia Militar e Civil, e vice-versa, ocorridos em maio daquele ano, de modo que o livro de contos foi quase que escrito ao vivo, nas madrugadas em que voltava de casa carregado com a energia do que via nas ruas desertas onde uma guerra muda (que, infelizmente, não mudou nada) deixava as pessoas ainda mais mudas.

Era um período de convulsão social, e epísódios trágicos - mais do que tristes - tiveram como palco a Praça da Sé. Em uma das tardes frias de maio em que flanava pelo centro, depois de escrever o livro - como eu disse, estava editando o material - dei por mim em plena Praça da Sé, onde sempre acabava chegando para usufruir do convívio solitário com as multidões que, ali, mais solitárias do que nunca, sempre foram ,para mim, mais honestas e ricas, como sempre, que o roteiro veio à minha mente. Veio com nome, trilha sonora (o objetivo era usar a música Roads do Portishead), sequência, tudo.

Foi concebido justamente como um filme de 1 minuto montado a partir de fotografias preto e branco analógicas. Mostrei a idéia ao meu grande amigo Meduza, que gostou e propôs de fazermos. Mas... só agora (e por nenhum minuto sequer esqueci a idéia) senti que possuía fotografias minimamente utilizáveis...

Das fotografias - e, portanto, do sentido de tudo isso
Toda obra deve ter uma biografia. Mais do que seu autor, a obra deve ser contextualizada. Qualquer obra. Arquitetos, críticos de arte, e engenheiros, todos devem concordar comigo. Bem, o fato é que essas fotografias dos moradores de rua que sempre, sempre, sempre ocuparam minha atenção, minhas lentes, minha mente, minha pena, dos quais sempre fiz protagonistas em qualquer tentativa de expressão que eu conseguisse (porque sua marginalidade é muito mais do que se pensa e enxerga  nos poucos momentos em que as pessoas os pensam e os enxergam...) realizar, foram feitas sob uma ótica especial.

Todas as tomadas foram feitas em película Ilford, ISO 100, com a Zeiss Ikon Contaflex que eu venero tanto. E foram feitas majoritariamente em 2011. Mas, deve perguntar o leitor: como, morando no Amapá, em 2011, você fez fotografias de moradores de rua na Praça da Sé?  Nas poucas vezes que eu visitava São Paulo, onde ia para encontrar a Musa e Mecenas Mari, detinha-me na velha Praça onde me formei verdadeiramente como antropólogo e indigenista (porque é espaço de minhas primeiras e mais marcantes experiências e reflexões sobre a alteridade, sobre ser outros), com a Zeiss a tiracolo e uma que outra película com algumas poses ainda por deflagar.

Vindo de Belém, Afuá, Breves, Serra do Navio, Oiapoque, com mais da metade das películas deflagradas, eu aterrisava em São Paulo com algumas poses ainda por fazer. E aproveitava para documentar-me, a mim mesmo, através de minha percepção sobre os velhos moradores que sempre ocuparam minha atenção...

Esse fato ganha outro valor quando as películas, ainda inteiras, sem cortes, são observadas: vê-se fotografias dos wajãpi, na terra indígena wajãpi, onde fotografo a maior parte do tempo, carregando açaí ou panakus com caça, e, abruptamente, prédios, cornijas e estatuária da Sé, a estátua do missionário catequizador dos índios e inaugurador da pobreza e da marginalidade oprimida que rodeia sua própria estátua, José de Anchieta.

Esse choque, aparentemente abrupto, não me surpreendeu. Descobri que, de fato, a fotografia pode nos permitir entrever os vieses de nossos próprios olhares. Descobrir-se a si mesmo através de uma observação mais detida sobre como se observa o mundo, e os outros, é missão compartilhada entre a fotografia e a antropologia.

O fato é que os indígenas catequizados pelo grande instaurador da megalópole desvairada na qual os netos desses indígenas não têm espaço senão nas periferias, oprimidos e ameaçados, ou ao chão, ao relento, às margens em pleno Centro, retratados no filme fotográfico lado a lado com os indígenas wajãpi ou com os caboclos de Afuá em cujos estaleiros me detenho a investigar sua arte náutica tão indígena, são o contraponto icônico em torno do qual a mensagem se dá.

Depois dessa longa explicação, (e arte, se é boa, prescinde de explicação...), segue o filme (que não é propriamente um filme, mas sim um método para expor fotografias concatenadas em uma sequência narrativa corroborada, como um cânon, pela trilha sonora).

Abaixo do filme, para quem quiser conferir, publico também o roteiro, tal como foi concebido originalmente em 2006.







“pós-guerra do desconcerto”
Bruno Walter Caporrino
Roteiro
Curta metragem documental videoclíptico: duração, 1 a 3 minutos.
Trilha sonora: “Roads”, do grupo Portishead, álbum “Dummy”.
Duração:  1 minuto
P&B
Situação: Praça da Sé, centro de São Paulo.

O curta consiste basicamente na transmissão de um sentimento especial, que tive todas as vezes em que andei pela praça, e observei seus habitantes, e sua desolação. Por isso, a idéia é a de que seja um vídeo-clip. Mudo.

Tive a impressão de que todos, ali, tiveram suas vidas roubadas de si mesmos, tal como, parece-me, ocorre após uma guerra. Tive a sensação de que o mundo simplesmente se desfizera, não apenas para mim, que saía de minha normalidade, mas também para eles, como deve ser quando todos seus parentes morrem queimados por napalm, e você, sozinho, depois de ver tantas atrocidades, refugia-se do mundo, no mundo – que é a própria loucura.

Eles vagam, ao léu, ostentando nos andrajos com os quais cobrem seus esmarridos corpos, toda a miséria a que o olhar comum pensa que foram relegados. Soldados de uma guerra perdida, sem nação, condecorações, armas; sem bandeira sobre o caixão. Sem nomes, sem memoriais: dos quais a sociedade, em sua batalha hecatômbica pelo pão, não quererá se recordar. Para nós, engomadinhos de estômagos e bolsos forrados. Porque é muito mais do que isso. Exercem sua humanidade e sua capacidade de agir, criam códigos, estabelecem signos, interpretações, condutas, valores. Relações. Estar à margem (do sonho burguês do castelinho da Disney) não é estar fora da humanidade: o que me atrai nessas pessoas é justamente mostrarem, concretamente, que é exatamente o contrário...

Mas esse fascínio que eles despertam em mim não faz com que os exotize, ou idealize. Sua vida é dura.

Sinto-me, ali, como se uma bomba tivesse caído, e congelado o tempo, como se vivêssemos, todos, no vácuo que sua deflagração deixa.

Andrajos. Pobreza. Sangue espirrado contra a parede central da Catedral – ao lado direito da escada. Ainda lá está: podem conferir.

Mas eu, sinceramente, ao olhá-los nos olhos – coisa a que o olhar comum teme absurdamente – vejo, apenas, inadequação, mal-estar, dúvida e inquietação.

Isso faz deles verdadeiros filósofos, para mim.

São dúvida, inquietação, são questionamento: o questionamento encarnado em seus ossos sem carne. Em suas barbas grisalhas, em seus conffabulares fabulsosos, acerca das vultuosas somas de sua miséria (uma cachaça, um relógio quebrado, um par de sapatos), levam suas vidas, e todas as nossas, no lombo. Um pregão de fome, em que se negocia sobras, migalhas, com o afinco de um acionista da Microsoft.

Vagam, e confabulam.

Alguns, seminus, dialogam com os coqueiros, personagens imaginários, companheiros de sua solidão pública, em pleno centro da cidade mais esbaforida e movimentada do Brasil.

Certo sábado, estando eu por lá, vi dois homens a confabularem, como se planejassem um crime. Acheguei-me, de manso, e o que ouvi foi uma discussão metafísico-religiosa digna do medievo: deus, existindo todo em sua grandeza, não poderia caber no cérebro humano, e nem nas páginas da Bíblia.

Um homem, jovem, cabelos tingidos de loiro, malgrado a negritude de sua tez, trazia ao ombro uma bolsa rosa, e calçava apertadíssimos scarpins vermelhos. Rebolava, afetando uma feminilidade impossível, e, em seu sorriso, em suas gargalhadas, dirigidas a personagens imaginários aos quais dirigias gritinhos e gracejos, eram verdadeiramente plangentes.

Nesse mesmo dia, a praça parecia mais desolada, devido à pressão atmosférica, e ao ar opresso que dela decorria. O peso do mundo parecia todo estar ali, centrado no marco central da praça, que aponta para todas as direções de onde vieram esses homens: minas, Goiás, Curitiba...

Nesse dia, enfim, vi o homem afeminado, cuja esquizofrenia causava uma esquizofrênica sensação de compaixão e medo. Pregadores berravam sua fé – captei uma preleção bonita, sobre Paulo e sua conversão. O homem não mencionou Dimas.

Havia uma verdadeira fila deles, que disputavam o quadrado de giz que era sua igreja. Sobre a pedra. Sobre Pedro.

Muitos outros pregadores disputavam a atenção dos mendigos, em diversos quadrados. Em torno de um, que jazia bem sob a sombra da enorme e ridiculamente irônica estátua do jesuíta conversor desta gente, aglomerava-se muita gente: ele dispunha de uma caixa de som e um microfone.

Mas, pasmem! Ao lado, exatamente ao lado dele, havia um grupo a tocar samba, com pandeiro, triângulo, cavaco. Muitos homens puseram-se ao redor, batucando em pastas de documentos e latas de lixo arrancadas dos postes.

Um deles, de boné, dançava, como em um transe, a sorrir toda sua dor. Juro-lhes: era um sorriso de dor. Uma dor alegre, pungente, e dançava, e dançava, e dançava...

O pregador, ao lado, enfurecia-se contra os infiéis. Jovens passaram em seus skates, prostitutas passaram, a rir-se do dançarino frenético.

E o mundo havia acabado, ali.

E a guerra que engendrou seu fim parecia ser perene. O dia, com uma camada finíssima de nuvens a filtrar o sol, de mormasso, seria eterno.

Modus Facendi

A idéia é fazer um curta-documental sem som algum, além de Roads: chegar à praça, e filmar. Diversos takes. Depois, editar, e inserir a música. O clipe seria a estética das impressões que eu queria tanto transmitir. Pensei em filmar os pregadores, e seus quadrados de giz. O jesuíta, ao pé do qual se sentam netos de índias estupradas por ele mesmo. Seus bisnetos.

A edição consistiria na montagem de minúsculos quadros, takes, estórias inter-cruzadas, algo assim:

Tudo em ritmo normal, P&B, com muita abertura, para que, com essa estética estourada e chiaroscura, tenha-se a impressão de algo onírico. Dia nublado e quente, com alta pressão. Velocidade: Slow-Motion, com leves acelerações, nos pequenos quadros de closes.

1 – Close: torre da Catedral.
2 – Close: pregador, com a bíblia nas mãos. A Catedral ao fundo.
3 – Panorâmica: a Praça. Pode ser um giro, do alto do marco central, algo espiralado, que comece do chão (uma rosa dos ventos de mármore), e vá subindo, até tocar com a objetiva os rostos dos pregadores, dos mendigos, dos passantes – com slow-motions aí – e, por fim, as torres gloriosas da Sé.
4 – Close: o rosto de um mendigo.
5 – Close: a parte do marco central que indica Goiás.
5 – Close: o rosto de outro mendigo.
6 – Close: outra faceta do marco, indicando Minas.
7 – Panorâmica. Foco nos confabulantes.
8 – Close: homem dormindo.
9 – Plano americano: homem a falar sozinho.
10 – Pregador, a falar sozinho.
11 – Close: o rosto de um mendigo.
12 – Close: outra faceta do marco. Paraíba.
13 – O pagode.
14 – Close: o sorriso do dançarino frenético.
15– plano seqüência videoclíptico, acelerado:
Torres da Catderal,
Pregadores,
Personagem a falar sozinho,
o Pagode,
o Jesuíta.
16 – Fade.