quarta-feira, 24 de outubro de 2012

#4 - Pós-Guerra do Desconcerto

O objetivo desse pequeno Portal é, como anunciado, estimular uma reflexão sobre a fotografia como construto narrativo vário, à luz (já que se trata essencialmente de luz) dos discursos construídos sobre "alteridades", visando explorar visões não sobre "os Outros" - e um debate sobre isso será iniciado aqui em breve - que não existem senão como funções (f) de determinados nós, mas sim sobre o ato de fotografar como um ato de aproximação ou negação dos outros através da maior ou menor projeção do observador e seus valores no mundo que apreende através da fotografia.

Bem, o fato é que desde que comecei a me arriscar pelo universo da fotografia, nos idos de 2006, idealizei um roteiro para um curta(curtíssimo)-metragem, de 1 minuto de duração, intitulado "Pós-Guerra do Desconcerto".

A idéia surgiu em minha mente em um dos inúmeros dias em que eu passava horas errando pelo Centro de São Paulo, onde ainda morava (me escondia?). Naquele período, eu estava finalizando a edição do (sempre) inédito livro de contos intitulado "Tristes Episódios", cujos episódios, inspirados em fatos transpirados por mim na realidade, giravam todos em torno dos fatídicos ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital) às Polícia Militar e Civil, e vice-versa, ocorridos em maio daquele ano, de modo que o livro de contos foi quase que escrito ao vivo, nas madrugadas em que voltava de casa carregado com a energia do que via nas ruas desertas onde uma guerra muda (que, infelizmente, não mudou nada) deixava as pessoas ainda mais mudas.

Era um período de convulsão social, e epísódios trágicos - mais do que tristes - tiveram como palco a Praça da Sé. Em uma das tardes frias de maio em que flanava pelo centro, depois de escrever o livro - como eu disse, estava editando o material - dei por mim em plena Praça da Sé, onde sempre acabava chegando para usufruir do convívio solitário com as multidões que, ali, mais solitárias do que nunca, sempre foram ,para mim, mais honestas e ricas, como sempre, que o roteiro veio à minha mente. Veio com nome, trilha sonora (o objetivo era usar a música Roads do Portishead), sequência, tudo.

Foi concebido justamente como um filme de 1 minuto montado a partir de fotografias preto e branco analógicas. Mostrei a idéia ao meu grande amigo Meduza, que gostou e propôs de fazermos. Mas... só agora (e por nenhum minuto sequer esqueci a idéia) senti que possuía fotografias minimamente utilizáveis...

Das fotografias - e, portanto, do sentido de tudo isso
Toda obra deve ter uma biografia. Mais do que seu autor, a obra deve ser contextualizada. Qualquer obra. Arquitetos, críticos de arte, e engenheiros, todos devem concordar comigo. Bem, o fato é que essas fotografias dos moradores de rua que sempre, sempre, sempre ocuparam minha atenção, minhas lentes, minha mente, minha pena, dos quais sempre fiz protagonistas em qualquer tentativa de expressão que eu conseguisse (porque sua marginalidade é muito mais do que se pensa e enxerga  nos poucos momentos em que as pessoas os pensam e os enxergam...) realizar, foram feitas sob uma ótica especial.

Todas as tomadas foram feitas em película Ilford, ISO 100, com a Zeiss Ikon Contaflex que eu venero tanto. E foram feitas majoritariamente em 2011. Mas, deve perguntar o leitor: como, morando no Amapá, em 2011, você fez fotografias de moradores de rua na Praça da Sé?  Nas poucas vezes que eu visitava São Paulo, onde ia para encontrar a Musa e Mecenas Mari, detinha-me na velha Praça onde me formei verdadeiramente como antropólogo e indigenista (porque é espaço de minhas primeiras e mais marcantes experiências e reflexões sobre a alteridade, sobre ser outros), com a Zeiss a tiracolo e uma que outra película com algumas poses ainda por deflagar.

Vindo de Belém, Afuá, Breves, Serra do Navio, Oiapoque, com mais da metade das películas deflagradas, eu aterrisava em São Paulo com algumas poses ainda por fazer. E aproveitava para documentar-me, a mim mesmo, através de minha percepção sobre os velhos moradores que sempre ocuparam minha atenção...

Esse fato ganha outro valor quando as películas, ainda inteiras, sem cortes, são observadas: vê-se fotografias dos wajãpi, na terra indígena wajãpi, onde fotografo a maior parte do tempo, carregando açaí ou panakus com caça, e, abruptamente, prédios, cornijas e estatuária da Sé, a estátua do missionário catequizador dos índios e inaugurador da pobreza e da marginalidade oprimida que rodeia sua própria estátua, José de Anchieta.

Esse choque, aparentemente abrupto, não me surpreendeu. Descobri que, de fato, a fotografia pode nos permitir entrever os vieses de nossos próprios olhares. Descobrir-se a si mesmo através de uma observação mais detida sobre como se observa o mundo, e os outros, é missão compartilhada entre a fotografia e a antropologia.

O fato é que os indígenas catequizados pelo grande instaurador da megalópole desvairada na qual os netos desses indígenas não têm espaço senão nas periferias, oprimidos e ameaçados, ou ao chão, ao relento, às margens em pleno Centro, retratados no filme fotográfico lado a lado com os indígenas wajãpi ou com os caboclos de Afuá em cujos estaleiros me detenho a investigar sua arte náutica tão indígena, são o contraponto icônico em torno do qual a mensagem se dá.

Depois dessa longa explicação, (e arte, se é boa, prescinde de explicação...), segue o filme (que não é propriamente um filme, mas sim um método para expor fotografias concatenadas em uma sequência narrativa corroborada, como um cânon, pela trilha sonora).

Abaixo do filme, para quem quiser conferir, publico também o roteiro, tal como foi concebido originalmente em 2006.







“pós-guerra do desconcerto”
Bruno Walter Caporrino
Roteiro
Curta metragem documental videoclíptico: duração, 1 a 3 minutos.
Trilha sonora: “Roads”, do grupo Portishead, álbum “Dummy”.
Duração:  1 minuto
P&B
Situação: Praça da Sé, centro de São Paulo.

O curta consiste basicamente na transmissão de um sentimento especial, que tive todas as vezes em que andei pela praça, e observei seus habitantes, e sua desolação. Por isso, a idéia é a de que seja um vídeo-clip. Mudo.

Tive a impressão de que todos, ali, tiveram suas vidas roubadas de si mesmos, tal como, parece-me, ocorre após uma guerra. Tive a sensação de que o mundo simplesmente se desfizera, não apenas para mim, que saía de minha normalidade, mas também para eles, como deve ser quando todos seus parentes morrem queimados por napalm, e você, sozinho, depois de ver tantas atrocidades, refugia-se do mundo, no mundo – que é a própria loucura.

Eles vagam, ao léu, ostentando nos andrajos com os quais cobrem seus esmarridos corpos, toda a miséria a que o olhar comum pensa que foram relegados. Soldados de uma guerra perdida, sem nação, condecorações, armas; sem bandeira sobre o caixão. Sem nomes, sem memoriais: dos quais a sociedade, em sua batalha hecatômbica pelo pão, não quererá se recordar. Para nós, engomadinhos de estômagos e bolsos forrados. Porque é muito mais do que isso. Exercem sua humanidade e sua capacidade de agir, criam códigos, estabelecem signos, interpretações, condutas, valores. Relações. Estar à margem (do sonho burguês do castelinho da Disney) não é estar fora da humanidade: o que me atrai nessas pessoas é justamente mostrarem, concretamente, que é exatamente o contrário...

Mas esse fascínio que eles despertam em mim não faz com que os exotize, ou idealize. Sua vida é dura.

Sinto-me, ali, como se uma bomba tivesse caído, e congelado o tempo, como se vivêssemos, todos, no vácuo que sua deflagração deixa.

Andrajos. Pobreza. Sangue espirrado contra a parede central da Catedral – ao lado direito da escada. Ainda lá está: podem conferir.

Mas eu, sinceramente, ao olhá-los nos olhos – coisa a que o olhar comum teme absurdamente – vejo, apenas, inadequação, mal-estar, dúvida e inquietação.

Isso faz deles verdadeiros filósofos, para mim.

São dúvida, inquietação, são questionamento: o questionamento encarnado em seus ossos sem carne. Em suas barbas grisalhas, em seus conffabulares fabulsosos, acerca das vultuosas somas de sua miséria (uma cachaça, um relógio quebrado, um par de sapatos), levam suas vidas, e todas as nossas, no lombo. Um pregão de fome, em que se negocia sobras, migalhas, com o afinco de um acionista da Microsoft.

Vagam, e confabulam.

Alguns, seminus, dialogam com os coqueiros, personagens imaginários, companheiros de sua solidão pública, em pleno centro da cidade mais esbaforida e movimentada do Brasil.

Certo sábado, estando eu por lá, vi dois homens a confabularem, como se planejassem um crime. Acheguei-me, de manso, e o que ouvi foi uma discussão metafísico-religiosa digna do medievo: deus, existindo todo em sua grandeza, não poderia caber no cérebro humano, e nem nas páginas da Bíblia.

Um homem, jovem, cabelos tingidos de loiro, malgrado a negritude de sua tez, trazia ao ombro uma bolsa rosa, e calçava apertadíssimos scarpins vermelhos. Rebolava, afetando uma feminilidade impossível, e, em seu sorriso, em suas gargalhadas, dirigidas a personagens imaginários aos quais dirigias gritinhos e gracejos, eram verdadeiramente plangentes.

Nesse mesmo dia, a praça parecia mais desolada, devido à pressão atmosférica, e ao ar opresso que dela decorria. O peso do mundo parecia todo estar ali, centrado no marco central da praça, que aponta para todas as direções de onde vieram esses homens: minas, Goiás, Curitiba...

Nesse dia, enfim, vi o homem afeminado, cuja esquizofrenia causava uma esquizofrênica sensação de compaixão e medo. Pregadores berravam sua fé – captei uma preleção bonita, sobre Paulo e sua conversão. O homem não mencionou Dimas.

Havia uma verdadeira fila deles, que disputavam o quadrado de giz que era sua igreja. Sobre a pedra. Sobre Pedro.

Muitos outros pregadores disputavam a atenção dos mendigos, em diversos quadrados. Em torno de um, que jazia bem sob a sombra da enorme e ridiculamente irônica estátua do jesuíta conversor desta gente, aglomerava-se muita gente: ele dispunha de uma caixa de som e um microfone.

Mas, pasmem! Ao lado, exatamente ao lado dele, havia um grupo a tocar samba, com pandeiro, triângulo, cavaco. Muitos homens puseram-se ao redor, batucando em pastas de documentos e latas de lixo arrancadas dos postes.

Um deles, de boné, dançava, como em um transe, a sorrir toda sua dor. Juro-lhes: era um sorriso de dor. Uma dor alegre, pungente, e dançava, e dançava, e dançava...

O pregador, ao lado, enfurecia-se contra os infiéis. Jovens passaram em seus skates, prostitutas passaram, a rir-se do dançarino frenético.

E o mundo havia acabado, ali.

E a guerra que engendrou seu fim parecia ser perene. O dia, com uma camada finíssima de nuvens a filtrar o sol, de mormasso, seria eterno.

Modus Facendi

A idéia é fazer um curta-documental sem som algum, além de Roads: chegar à praça, e filmar. Diversos takes. Depois, editar, e inserir a música. O clipe seria a estética das impressões que eu queria tanto transmitir. Pensei em filmar os pregadores, e seus quadrados de giz. O jesuíta, ao pé do qual se sentam netos de índias estupradas por ele mesmo. Seus bisnetos.

A edição consistiria na montagem de minúsculos quadros, takes, estórias inter-cruzadas, algo assim:

Tudo em ritmo normal, P&B, com muita abertura, para que, com essa estética estourada e chiaroscura, tenha-se a impressão de algo onírico. Dia nublado e quente, com alta pressão. Velocidade: Slow-Motion, com leves acelerações, nos pequenos quadros de closes.

1 – Close: torre da Catedral.
2 – Close: pregador, com a bíblia nas mãos. A Catedral ao fundo.
3 – Panorâmica: a Praça. Pode ser um giro, do alto do marco central, algo espiralado, que comece do chão (uma rosa dos ventos de mármore), e vá subindo, até tocar com a objetiva os rostos dos pregadores, dos mendigos, dos passantes – com slow-motions aí – e, por fim, as torres gloriosas da Sé.
4 – Close: o rosto de um mendigo.
5 – Close: a parte do marco central que indica Goiás.
5 – Close: o rosto de outro mendigo.
6 – Close: outra faceta do marco, indicando Minas.
7 – Panorâmica. Foco nos confabulantes.
8 – Close: homem dormindo.
9 – Plano americano: homem a falar sozinho.
10 – Pregador, a falar sozinho.
11 – Close: o rosto de um mendigo.
12 – Close: outra faceta do marco. Paraíba.
13 – O pagode.
14 – Close: o sorriso do dançarino frenético.
15– plano seqüência videoclíptico, acelerado:
Torres da Catderal,
Pregadores,
Personagem a falar sozinho,
o Pagode,
o Jesuíta.
16 – Fade.

sábado, 15 de setembro de 2012

#2 - A máquina de gastar gente


Assim que entramos no mercado do peixe do Perpétuo Socorro, somos surpreendidos – mais ou menos, dependendo do contato que se tem com esses mercados de peixe da Amazônia – pela barafunda colorida e álacre que toma as bancadas recobertas de zinco onde jazem, ainda vivos – mais do que frescos – tambaquis, uritingas, piaus, pacus, pacusis, piranhas, akaris, bodós, filhotes, piraíbas, matrinxãs, pirapitingas, surubins, etc. O gazetear dos vendedores, os chistes sinceros dos carregadores e compradores, tudo isso envolve o espectador numa aura própria, única, que dissolve o tempo e lhe imputa uma certa pressa, ou, antes, uma azáfama alegre e buliçosa, que marca o contraste da aparente pobreza dos frequentadores (compradores e vendedores) com a riqueza que manipulam, a nobreza do produto que negociam, e cuja fartura permite aos mais esclarecidos entender que a pobreza é apenas aparente.

Não foi diferente neste sábado onde, indo encontrar minha camarada cozinheira de terra indígena, Naídes, que mantém uma banca de peixe salgado no mercado, aproveitei para comprar matrinxãs e fazer umas fotos dos já conhecidos vendedores. Entre um gole e outro de café, eis que uma algaravia toma a parte fronteira do mercado: defronte ao caminhão que descarregava sacas de cebolas, Maria Inês, conhecida vendedora de ervas e tucupi, deblaterava com o proprietário do caminhão, que lhe devia sacas e mais sacas já pagas, vindo entregar, disparatadamente, apenas aos outros vendedores, o produto. De chofre, Maria Inês, irritada e a invectivar contra um carregador, entre aplausos e gritos jocosos de incentivo dos frequentadores do mercado, sobe à caçamba do caminhão e começa a deitar fora as sacas que o dono entregaria a outros que não ela. Mais aplausos e chistes.
---- Égua, mulherzinha enxirida essa! Dizem alguns.
---- Certa ela... o homem recebeu e não entrega... tá pensando que a gente somos besta?
Naídes e Loira, sua colega de banca, se riem, e arrumam os saquinhos com coloral e as garrafinhas de tucupi sobre a bancada, enquanto eu dou mais uma rodada pelas bancadas onde uma nova leva de tambaquis e pacus pretos agonizam, e, para sincera irritação de um jovem vendedor, ainda não convencem a dona maria que, examinando-o detrás dos óculos de grossos aros e prendendo os cabelos já repletos de cãs, pergunta:
---- Essa aqui tá fresca mesmo, será se?
Mais algumas tomadas, e gracejos com um freguês que afastou-se o foco da objetiva de sopetão, como quem leva um soco, como um foragido.
---- Égua, medo é esse mano? Tá com medo de ir para no Bronca Pesada do meio-dia? Exclama entre risos o vendedor que tica um par de piranhas na sua frente.
Mais risos. A vida segue seu ritmo, entre a morte agonizante dos peixes e o sustento dos vendedores e das famílias das matronas caboclas que regateiam o centavo/grama, como sói.
Deixando o mercado, provisoriamente instalado na avenida Ana Nery, longe um tanto do Amazonas, mas ainda no tradicional bairro pescador do Perpétuo Socorro, deixei-me levar pela faina colorida e aromática do mercadejar dos viventes, e vaguei a esmo pelo bairro, pois tinha-se acabado a película – última – dentro da Zeiss.
Como sempre acontece, deparei-me com a beira-rio, que, neste trecho a norte do Igarapé das Mulheres, é um ermo selvagem – deliciosamente selvagem – onde os aningais encostam de quando em quando, e ainda há vegetação sobre o leito lamacento-arenoso do Rio. Uma placa de macabaúba encostada à murada, e mais um chiste de vida: “Temos peixe”. Ô se! O Rio logo atrás. Última pose, sorte!
 
Estando o sol a pino, o que, por estas bandas equatoriais significa que estava inclemente, decidi aprumar o rumo da caminhada para o Igarapé das Mulheres, de onde poderia comprar um açaí ir para casa assar a matrinxã. Mas todas as vezes que percorro este lado norte da orla, agora devastada pela força das águas no repiquete pré-piracema, sinto certo misto de tristeza e felicidade. Felicidade porque sendo ali a beira-rio do bairro pobre e tradicional dos pescadores, os esforços das prefeituras anteriores em construir quiosques com apelo turístico (o que, no caso do Brasil, consagra sua raiz e quer dizer “para inglês – e só inglês, não o nativo – ver”) e transformar a várzea em uma praia para os gringos, foram malogrados.
Mas também tristeza porque, contemplando a beleza da paisagem ainda selvagem, onde alguns moradores se banham com os filhos tranquilamente, e, na preamar, lanchas e iates aportam à espera da cheia, regateando, sempre vejo por ali algumas pessoas que se apoderaram dos quiosques falidos e, tendo atado redes, cozinham em latas de tinta látex os bodós que o povo joga fora. Como pode tanta pobreza, à margem de tanta riqueza? É um contraste de dar calafrios: Pneumotórax, uma vinda inteira que poderia ter sido e não foi...
Por diversas vezes essa mistura de sensações tomou conta de mim ao passar por ali. E isso se acirrou desde de a ante-penúltima vez, quando, ao entardecer de uma quinta-feira, vi uma moça jovem, de cerca de 18 anos, morena de nascença, escura de sol, magra e tatuada, sair de uma lancha aportada enquanto o proprietário subia a braguilha de sua calça, à proa, como quem palita os dentes depois de melar-se todo de peixe reimoso. Seus olhos – os da moça – percorriam a beira, envergonhados, e pude ver que mareavam, à preamar.
Outra feita, zanzando por ali, confirmei as suspeitas: era, a moça, mais uma das mulheres brasileiras que o Brasil enjeita, e que sustenta as carnes depreciando a alma, vivenciando perigos vários por estas beiras, baixios, zonas, portos, tantos, tantos, que sequer chegamos a conhecer.
O caso é que desta feita, tomado, como sempre desde então, pela mesma mistura de sensações de sempre, parei em um ponto onde julgava não haver absolutamente ninguém, para aproveitar o poderoso zoom ótico da câmera digital e fazer umas tomadas de um pai que brincava com seu filho nas águas do Amazonas banhadas de luz, até que, amaldiçoando o sistema de focagem da Fuji, que limita muito a focagem manual, percebi que alguém se achegava por trás de mim.
---- O senhor tem um cigarro?
Era ela. Magra, queimada de sol, o rosto jovem e o riso ingênuo de moça cabocla a persistir, triunfante, sobre a pobreza extrema a que fora relegada. Respondi que não, e fiz menção de que ia guardar o equipamento e deixar o local, já que, não pretendendo usufruir de seus serviços, não iria tomar-lhe o tempo.
---- Aqui é bonito né? Pena que é sujo. Eu moro aqui, na beira, bem ali – e embeiçou na direção dos quiosques abandonados.
---- Pois é, é lindo, sim. Tampei a objetiva, e fechei o case da digital, respondendo que, ao menos, não lhe faltava lugar para banhar e pegar água (em todo o Perpéctuo Socorro, por um milagre da natureza humana e da administração pública a mais corrupta, falta água, estando há metros do maior rio do mundo: não riam; por favor, contenham-se, pois é triste).
---- Ah, não, eu não banho aqui não. É muito sujo. Tem muita gente que joga sujeira, porco morto; por esses dias, mataram uma sucuriju aqui com um pau. Sorriu, entre matreira e humilhada, a engolir seco como quem se prepara para anunciar ou pedir algo importante. E prosseguiu: ---- eu banho nos barcos, quando durmo com os caras, e também no motel...
Fez um silêncio envergonhado, contemplou o rio, e, prendendo o vestido com a presilha dos cabelos, no intento de mostrar as magras pernas provocativamente, tomou a resolução de expor, por fim, seu intento:
---- Bora fazer um sistema, nós dois? Eu tô com fome...
Eu, que já tinha virado as costas devagar e ia embora, aproveitando sua pausa contemplativa, estaquei, gélido, ante a dureza sincera da frase, enunciada em tom tão melífluo e matreiro por uma simples menina, tão menina quanto versada nas artes de humilhar a alma promovendo o corpo. “Eu tô com fome” foi a frase mais arrebatadora que ela poderia ter dito, neste contexto delicadamente orquestrado para embrutecer os sentidos e calar a razão, ironicamente diante de tão puros e bonitos, profundos estímulos como o vento agridoce e a paisagem do rio, em cuja outra margem um verdadeiro e concreto Eldorado se estende pelo tapete verde de açaizais cortados pelo Rio de onde os peixes pulam para as malhadeiras por livre iniciativa.
Sem saber o que lhe dizer, lamentei, dizendo que não poderia (sabendo, no íntimo, que expor as reais razões para isso a humilhariam ainda mais, pois seria o mesmo que dizer-lhe em letras garrafais que eu recusava humilhá-la porque ela se humilhava por profissão), e deixei, vergado, o posto onde ela me abordara, sem conseguir conter o marear dos olhos.
Caminhando cabisbaixo os 500m que me separavam da aglomeração que guarnece o boqueirão do Igarapé, e onde a faina de beira retoma seu pique, deparei-me com uma pequena lancha sem pintura emborcada, que, com o motor de centro acionado, secava o porão do batelão. De dentro dele, sorridente e simpático, acenou para mim o proprietário, enquanto jogava para a lama quilos e mais quilos de akari-bodó, peixe de fácil reprodução e pesca que, pela aparência cascuda, pela cor escura, pelo hábito de sobreviver da e na lama quando das secas, e pela facilidade de ser pescado, é completamente desprezado como uma Geni, por estas paragens urbanas amazônicas, onde impera o desperdício o mais gritante dos recursos mais preciosos que o Planeta já ousou nos oferecer.
Isso me fez pensar, com amargura, na moça que oferecera seu corpo por um litro de açaí – quiçá menos – sobrevivendo às margens do maior estoque pesqueiro, de açaí, de biodiversidade e riquezas jamais conhecido pelo homem; consagrando o espírito amapaense, sempre disposto a fazer-se maquete, caricatura do Brasil, ao celebrar uma ode ao desperdício, ao mau-trato, ao mau-uso, ao não-cuidado. Agradecendo ao velho Daia pelo açaí especial vendido, como sempre, pelo preço do normal, cruzei os conveses dos iates e lanchas abeirados para chegar em casa, pensando em Darcy Ribeiro, que foi quem, depois de tudo o que tenho visto e vivido, nesse sentido, me deu uma das melhores definições do que somos neste país: o Brasil é uma máquina de gastar gente – desperdiçar recursos, e acumular riqueza nas mãos de poucos, acrescento.

Bruno Walter Caporrino
Macapá, 26 de maio de 2012





Mensagem # 1 - Bem-vindos

Sejam bem-vindos a esta humilde publicação!
Criei-a como um anexo do Beagle (www.beagle40.blogspot.com.br) porque ela tem outra finalidade, uma finalidade específica: servir de plataforma para debate e reflexão sobre a vida amazônida contemporânea, com enfoque especial para digressões acerca das imagens que se faz dela.
Tanto as imagens que outros atores fazem dela, quanto as imagens que eu mesmo tenho feito desde 2008, através da fotografia analógica 35mm em preto e branco.
Pré-conceituadas, todas as imagens hão de ser.
Como ensina Clifford Geertz, os homens são seres amarrados a teias de significados, de acordo com as quais contemplam o mundo e, assim, realizam sua missão genética, que é a de existir no mundo interpretando-o à sua maneira.
Mas, como ensina Lévi-Strauss, o que iguala os homens é justamente o fato de diferenciarem-se. 
Como não nos é facultado evadir-mo-nos de nós mesmos enquanto consciência transformadora do mundo, pois estar nele é apreendê-lo, recortá-lo, interpretando-o, é de visões sobre a vida amazônida que se ocuparão estas reflexões, entendendo as fotografias aqui postadas não como um reflexo puro e simples do mundo, mas sim como um reflexo de mim mesmo, seu autor através delas, de modo a debater a mameira como esse mundo aparece para mim; como a ontologia manifesta-se enquanto fenômeno através de minhas lentes.
Portanto, é partindo do pressuposto de que a síntese da existência humana é estar no mundo de modo a apreendê-lo de acordo com uma totalidade estruturalmente integrada de signos, valores, uma weltanschaaung, ou seja, visão de mundo, o conteúdo dessas publicações é declaradamente produzido sob um prisma idiossincrático: o meu, seu autor.
É sobre essa relação entre sujeitos e fenômenos que versam estes textos e fotografias aqui publicados. Através da publicação de alguns de meus trabalhos como fotógrafo amador, sobre a Amazônia Oriental (Amapá e Pará), buscarei compartilhar com vocês, conquanto o desejem, reflexões sobre Amazônia não como todo em-si (de que resultaria como uma pálida e patética quimera), uma ontologia inerte e inane, mas sim como uma miríade infinita de possibilidades: possibilidades de perspectiva, de aparição (fenômeno), de apreensão, e interpretação. Como um fenômeno produzido e produtor de relações consagradas através da aplicação, justamente, de perspectivas.
Assim, as fotografias com que venho trabalhando, e que buscam não apenas ilustrar o tema dessas reflexões, mas muitas vezes constituir o próprio tema ou reflexão, são publicadas com o objetivo de trazer à luz aquilo que, com elas, busquei trazer à luz: a inapreensível exuberância desse universo repleto de formas de ser, existir, posicionar-se e resultar-se diante de tantas e tão variegadas outras formas de existir e apreender.
É sobre homens que versaremos. 
Homens em suas mais diversas relações com os mais diversos meios, percebidos sob uma ótica diversa de tantas outras.
Àqueles dispostos a baixar os gládios de sua visão dominante e dominadora, àqueles dispostos, pois, a re-pensar-se enquanto sujeitos produtores do mundo, sujeitos ativos de perspectivas, aptos a reconhecer-se, portanto, perspectivados e pólos passivos do estar-no-mundo, essa modesta publicação recebe de braços abertos.
Àqueles que desejam prosseguir suas existências ignorando do mundo aquilo que não os reflete como o desejam, tal qual narcisos quixotescos que deblateram-se com o mundo por não encaixar-se em suas tramas conceptuais - postura essa que resulta em fracassos iracundos e tragicômicos, tão grandes como a amazônia, como a rodovia Trans-Amazônia - à essas pessoas, enfim, nós (seu autor, e parceiros de convívio e reflexão, retratados que são os verdadeiros autores das fotografias), recomendamos vasculhar pela internet outros portais, onde possam refastelar-se com sua etnocêntrica, antropocêntrica, ego-cêntrica visão de mundo...
Pois os há, em grande quantidade.
Se desejas defrontar-se consigo mesmo, ao contemplar o mundo, então, colega, embarque, pois é exatamente desse exercício que são feitas as reflexões (reflexos) que povoarão este portal.